segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A Percepção do EU nas Sociedades Contemporâneas

Francisco Formigli é professor, formado em Psicologia e Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA.

Palavras-chaves: subjetividade – personalidade – individualidade – identidade

Resumo:
Autores importantes da contemporaneidade questionam o conceito, o estatuto e o uso comum do sentido do eu. Este artigo discute os limites epistemológicos que o egocentrismo impõe aos atos de perceber, pensar, sentir e atuar no mundo e coloca uma proposta para o uso dos termos: subjetividade, personalidade, individualidade e identidade, entendidos como resultantes de uma economia subjetiva.

Desde o início dos tempos, os povos percebiam a terra como plana e fixa, como o centro do universo e da existência, idéias profundamente centralizadas e centralizadoras. A concepção de si mesmo não era diferente. O homem “civilizado”, centro da criação, fruto da conspiração de deuses, concebia-se, muitas vezes, como algo à parte do reino animal e mesmo da Natureza. É curioso notar que concepções análogas perduram até hoje com muita força, mesmo nos meios mais “informados”.
Vamos acompanhar um pouco a história. Depois desse ponto máximo de fixidez, a própria experiência humana sobre a Terra levou a uma série de insights e observações que favoreciam o questionamento dessa verdade absoluta por alguns, como Galileu e Copérnico. Esta “insanidade” lhes custou caro na época. Entretanto, foi possível abalar as bases de uma construção tão sólida. Começou-se a admitir os fortes indícios de que a Terra talvez não fosse plana como se pensava e como de fato a evidência da visão mostrava. De qualquer forma, continuávamos a ser o centro do universo. Isso foi mudando, com o tempo, para o centro do sistema solar, onde o sol era mais um de nossos satélites. Daí, já não éramos mais o centro de tudo, mas o nosso sol, sim. Mais um pouco, nem mesmo o sol era o centro do universo e colocava-se a idéia de que poderia haver vários centros como aquele. Por fim, chegamos ao consenso de que o universo constitui um espaço e tempo de dimensões não bem determinadas e que, longe de constituirmos seu centro, não passamos de um dentre, talvez, seus trilhões de centros possíveis.
É curioso também notar que a concepção de si mesmo ou de um “eu” ou de uma identidade fixa para o universo subjetivo, são baseados na evidência da visão da unidade biológica/material da existência em indivíduos (e aparente autonomia dessa unidade). A contemporaneidade traz um questionamento profundo dessa centralidade absoluta (em oposição a uma relatividade dessa centralidade, e não exatamente sua destruição). Dentre outros, parece que C. Darwin e S. Freud desferiram golpes mortais contra essa percepção de si. O primeiro, demonstrando a continuidade biológica e evolutiva do homem em relação às outras criações da natureza. Já não seríamos mais o centro da criação e da existência animal/material, mas um centro dentre vários que a biologia utiliza para realizar seus ensaios. Freud, por outro lado, levava adiante a possibilidade de que funcionasse dentro da psique algo para além de um “eu”. Esta entidade passaria a ser um centro importante dentro de uma organização subjetiva, mas estaria longe de ser o único. A maior parte funcionaria longe da evidência da consciência e constituiria vários centros irradiadores de comportamentos, sensibilidades, percepções, controles etc.
Para que se dê subsídios ao pensamento, entretanto, não podemos deixar de levar em conta, antes de mais nada, idéias bastante frutíferas no que se refere à subjetividade e seu produto, a personalidade. Pesquisadores das várias linhas estão de acordo em pelo menos um ponto: a personalidade é constituída, de uma maneira ou de outra, pelo conjunto das vivências do sujeito num contexto biológico-social-histórico, e esse conjunto se inscreve como memória subjetiva. Freud, nesse caso, teve o insight de identificar de maneira explicita que há um fator econômico permeando intrinsecamente toda a questão da subjetividade. Aqui a economia é, digamos assim, a lógica de processamento e distribuição das quantidades de “energia psíquica”, dentro de esquemas qualitativos (sígnicos). Seria então a distribuição/configuração dos investimentos que determinariam uma posição e uma função do eu, dentro de uma economia subjetiva individual e/ou coletiva.
Independente das pretensões psicanalíticas de ser “a melhor maneira (e, talvez, a única)” (Bougnoux, 1994, 216) de fazer uma economia da subjetividade, o fato é que, sem levarmos em conta esse fator, estaremos correndo sério risco de interpretarmos o humano puramente como um computador. Isto não seria totalmente equivocado. De fato, é possível perceber no funcionamento da memória subjetiva algo da natureza de um computador: armazenar, processar e emitir dados, obedecendo a determinados programas (esquemas qualitativos). O problema é que o sujeito não processa simplesmente dados, sejam quantitativos ou qualitativos; ele processa as próprias quantidades (ou intensidades), destacando e vinculando qualidades (significações). O computador poderia trabalhar, por exemplo, com dados de tempo e de espaço; o sujeito trabalharia diretamente, além disso, a própria temporalização e espacialização (materialização).
No processo de subjetivação - isto é, no processo de montagem dessa espécie de computador cósmico – estão implicados universos inteiramente heterogêneos e, no entanto, amplamente integrados. Esses universos, como propõe Guattari-Rolnik (1986) se expressam tanto num nível extra-individual (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, ecológicos, etológicos, de mídia etc.) como num nível imediatamente individual e antropológico (sistemas de percepção, de afeto, de desejo, de sensibilidade, de representação, de imagens, de valor, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, fisiológicos, biológicos etc.). Portanto, a subjetividade seria a resultante do cruzamento desses planos, desses níveis, dessas dimensões na realidade de um indivíduo ou coletividade. Estes seriam transpassados e constituídos por correntes ou fluxos semióticos/energéticos/materiais provindos das várias dimensões da existência, sofrendo inscrições delas e nelas se inscrevendo. Estes fluxos – como os fluxos de capital numa macroeconomia – seriam a própria dinâmica econômica da subjetividade.
Além disso, seria interessante situarmos os termos correlacionados com a subjetividade como se, na verdade, se tratasse dos mesmos eventos. Personalidade, subjetividade e identidade são termos normalmente utilizados pelo senso comum de maneira aleatória e equivalente (um pelo outro). Mesmo na ciência psicológica podemos perceber uma igual falta de rigor e a mesma leitura profundamente preconceituosa (por ser também confusa e aleatória) desse fenômeno humano. É justamente aqui que aparece o grave equívoco de se confundir as dimensões subjetivas específicas com a subjetividade como um todo. Esses termos não se equivalem e designam dimensões distintas de ser humano. Cada um diz respeito a modos de funcionamento ou regimes na organização psíquica diferentes.
Personalidade se refere a uma captação histórica de uma experiência vivida por todo ser humano. A sensação de estar vivendo concretamente uma história. Se formos considerar a etimologia da palavra retomaremos suas origens no teatro. Per sonare: buraco das antigas máscaras utilizadas no teatro, através do qual passava o som da voz do ator (vejam, aquele que atua, terminal biológico da ação, diria) e sua fala provocaria seus efeitos na cena. Com o tempo esse fato passou a nomear o próprio ente ou individuo presente na história: a persona ou o personagem como dizemos hoje. Daí a se popularizar em pessoa, ou seja, quem nós somos, foi apenas em pulo.
Sabemos que esse personagem é construído e, mais ou menos explicitamente, que ele ganha vida e atua. A sua aparência de unidade é só aparência: um ator sabe que o personagem vai sendo construído ao longo de um processo, antes de encarná-lo totalmente. Se prestarmos atenção, também percebemos que, não à toa, somos para nós mesmos e para outros uma personalidade. Como no teatro, somos construídos, só que não por um autor individual, mas por um coletivo chamado cultura. Ela fornece os elementos de construção ou montagem desse personagem (personalidade) através de seu acervo de figurinos, trejeitos, línguas e linguagens, costumes e tradições etc. O conjunto dinâmico desses elementos chama-se subjetividade. Sua unificação ou integração em um sistema funcional singular, chamaremos de personalidade. Para que ela filtre o excesso de informações disponíveis no acervo cultural e organize aquelas que forem necessárias ao personagem, existe um processo econômico (passagens, bloqueios, retiradas e investimentos, como vimos) chamado identidade. Esses mecanismos selecionam os elementos subjetivos: isso aqui, sim; isso, não, isso tem muito valor, já isso aqui é desprezível. Os elementos ou módulos subjetivos, portanto, não só vão construir o personagem, como vão mantê-lo estabilizado (e não fixo) numa determinada natureza de ser, digamos.
Não vamos nos deter mais nessas teorizações. O fato é que, a partir daí, apontaremos para um deslocamento dessa centralidade como a única condição legítima para concebermos a existência e o funcionamento humanos. Com isso, queremos chegar a questionar a própria fixidez com que (ainda) se opera a idéia de subjetividade, individual e coletivamente. Não há a proposta de que abandonemos nossos referenciais mais caros da percepção cotidiana. Para todos os efeitos, a Terra continua plana e, até onde posso ver, eu sou eu…

Num dos seus seminários, em 1954/1955, J. Lacan (1985) discute longamente a concepção e a aproximação “clínica” da entidade egóica. Ele começa com uma exposição das concepções de um eu por vários filósofos e estudiosos como Sócrates, Locke, Kant, até chegar a Freud, tentando demonstrar os desvios e vicissitudes na situação de um conceito como esse. Baseado em observações, ele conta, Freud elabora um conceito de dimensão inconsciente da subjetividade, começando com isso a deslocá-la de uma idéia basicamente consciente de sua constituição. A própria identidade eu = consciência, a uma certa altura da concatenação das observações, não parece mais se sustentar: “(…) quanto mais Freud avança em sua obra, menos consegue situar a consciência, e ele tem de acabar confessando que ela é, no final das contas, insituável” (p. 15, grifo meu). É um primeiro passo para um deslocamento das concepções em torno de uma subjetividade em que o ego centraliza não só as idéias como as ações (e, portanto, a economia subjetiva). Não que nada disso tenha sido pensado antes, mas nunca de maneira tão sistemática e objetivada. O sujeito não se confunde com o indivíduo: isso teve a força de uma revolução copernicana na visão de homem e de mundo que se formou na contemporaneidade. Lacan quer levar às últimas conseqüências a idéia de que “o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionando como sujeito, é diferente de um organismo que se adapta” (p. 16).
O organismo se regula em primeiro lugar pelas condições do ambiente material no qual está inserido, do qual faz parte. O sujeito, por outro lado, não fica submetido apenas o ambiente físico, mas a universos simbólicos e imaginários, isto é, ao universo das significações. Portanto, ele está deslocado do terminal biológico individual para universos de histórias, enredos, narrativas, estilos, estéticas etc., que são sempre universos coletivos (não existe um ego unitário no planeta; mesmo que se viva sozinho, está-se conectado a um coletivo pela língua e pela genética, por exemplo). O sujeito estaria em jogo através de uma série de forças para além do que a sua organização egóica, histórica (individual), poderia determinar. Dentro de uma organização psíquica identificada e estabelecida haveria uma outra que não partiria somente do princípio de um si mesmo = eu, mas de um si mesmo como outro; “… a sua conduta toda fala a partir de um outro lugar que não o deste eixo que podemos apreender quando o consideramos como função num indivíduo, ou seja, com certo número de interesses concebidos na areté individual” (p. 16). Os interesses do sujeito podem ir muito além das necessidades do indivíduo, como mostra esta trecho da música dos Titãs, que estourou nos anos 80:

Bebida é água / comida é pasto / você tem sede de quê? Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida / a gente quer comida, diversão e arte (...)
A gente não quer só comida / a gente quer saída para qualquer parte...”
(Comida, in Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, 1987)

A obra de Lacan é toda dedicada ao desenvolvimento dessa idéia básica e à elaboração de vários conceitos do autor, como o Outro, objeto a, esquema Z etc., que serão utilizados então como operadores psicanalíticos e como argumentos também para dissolver a crença absoluta do eu em sua autonomia constitutiva. “Esta convicção (um autonomous ego) ultrapassa a ingenuidade individual do sujeito que acredita em si, que acredita que ele é ele - loucura bastante comum e que não é uma loucura total, pois faz parte da ordem das crenças” (p. 20). Ou seja, a subjetividade é tão autenticamente percebida pelo ego quanto se percebe a Terra como plana. Então, se concebe o ego como se fosse a unidade individual, reduz-se o sujeito ao eu e este ao indivíduo e suas “necessidades”. Novamente, cremos na evidência da nossa percepção. Lacan diz, daí, que o problema de uma reificação do eu, do autonomous ego, se reflete num tipo manipulação de uma concepção da realidade em que se acaba legitimando que uns “existam” mais do que outros e corroborando um padrão egóico que se desenvolve dentro de uma “normalidade” esperada, formulada a partir de certas necessidades sempre de fundo orgânico e usando-se o parâmetro de “indivíduo”.
Tudo isso daria uma discussão ampla e produziria um trabalho específico. Aqui basta-nos frisar que esse questionamento sistemático de um eu autônomo deu frutos, como uma nova visão do homem no mundo, sua identidade, e a visão do próprio mundo como suporte de uma existência inteligente. Podemos apontar a fixação da psicanálise em reificações dos seus próprios conceitos, caindo muitas vezes na armadilha de um reducionismo relativamente fácil. Uma visão de individualismo que fora questionada nas bases voltou depois pela entrada dos fundos, reduzindo sua análise do homem a uma eterna novela familiar (papai, mamãe e eu) onde um contexto cultural e antropológico ficou muitas vezes esquecido.

F. Guattari (1986), contribui também para essa descentralização do eu como o centro de ação dos fenômenos subjetivos. Acredita que toda idéia de identidade passa sempre por um agenciamento de módulos subjetivos que se desenvolvem numa dimensão extra-individual, embora possa se singularizar em uma individualidade. Mas, não é aí que o processo nasce e provavelmente o grosso de sua constituição se passa em outro lugar. Sua idéia básica parte também da crítica ao procedimento cognitivo de se fazer a identidade coincidir e se restringir a um ego e seus processos individuais, sendo que qualquer fenômeno de ordem social, antropológica ou de ordem molar, enfim, seriam fatores de “influência” sobre a subjetividade considerada como um eu. Para ele não seria uma questão de influência de um contexto sobre um sujeito, mas esses dois elementos seriam coextensivos de uma mesma realidade; às vezes dotada de consciência individual e/ou coletiva, às vezes se manifestando de forma invisível e difusa e/ou fora de uma organização egóica, mas, igualmente subjetiva e passível de singularizar “identidades”. A psicanálise já teria aberto, em princípio, uma trilha com a idéia de que “haveria pontos de singularidade subjetiva aquém das estruturas do ego e das estruturas identificatórias. (…) Para aquém do discurso da identidade e do discurso do ego, modos de subjetivação podem se encarnar no corpo, em discursos de imagens, em discursos de relações sintomáticas, em relações sociais, etc.” (p. 67). Quer dizer, muitos comportamentos que se manifestam no indivíduo não fazem parte sequer da história pessoal reconhecida pelo ego. Muitas identificações acontecem sem que haja qualquer assistência de um eu. Mais ainda: antes da formação subjetiva que mais tarde será um eu os processos e mecanismos de identificação já estariam atuando.
O autor quer ir além da psicanálise e propõe uma diferenciação de termos que são comum e indiferentemente utilizados. Identidade e singularidade seriam dois conceitos completamente distintos. “A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência (...)” (p. 68). Isto quer dizer que a existência de cada um é necessariamente específica, particular: nenhum indivíduo pode “existir” pelo outro, nenhuma entidade material pode estar no mesmo lugar de outro ao mesmo tempo, já dizia a física clássica. Por isso que singularidade é um conceito existencial. Já identidade seria um conceito de referência porque, como a expressão diz, você se refere sempre a algo (significações, estilos, repertórios de comportamentos etc.) para demarcar a parte subjetiva a que você se reporta e/ou pertence. Não haveria nenhum problema em utilizar quadros de referência como guias de realidade, afinal, é assim que temos funcionado. O problema é que na prática há uma redução da singularidade a um determinado quadro de referência (como a identificação nos procedimentos policiais reduzindo o sujeito a uma carteira de identidade, a um registro identitário burocrático, ou ainda o processo de identificação situado pelos freudianos, reduzindo sua identidade a conceitos de referência, como “o” histérico, “o” sádico etc.). Ou seja, “a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referências identificável” (p. 69). Guattari chega a afirmar que os conceitos (que frequentemente tornam-se pré-conceitos) de cultura e identidade cultural muitas vezes são profundamente reacionários: “a cada vez que os utilizamos, veiculamos, sem perceber, modos de representação da subjetividade que a reificam e com isso não nos permitem dar conta de seu caráter composto, elaborado, fabricado, da mesma forma que qualquer mercadoria no campo dos mercados capitalísticos” (p. 71).
Então, diferentemente do procedimento cognitivo e epistemológico de assimilar identidade e subjetividade, o autor propõe que “A identidade cultural constitui, a meu ver, um nível da subjetividade: o nível de territorialização subjetiva” (p. 73), já que se trata de um processo de demarcação e não uma substância em si. Ele já sai mais da idéia de identidade circunscrita pela psicanálise a um processo psicológico principalmente individual, para planos existenciais mais amplos que extrapolam o individual. Com isto, o autor questiona enfim o próprio conceito de identidade cultural: “A noção de ‘identidade cultural’ tem implicações políticas e micropolíticas desastrosas, pois o que lhe escapa é justamente toda a riqueza da produção semiótica de uma etnia, de um grupo social ou de uma sociedade” (p. 73). Portanto, para ele, cada vez que nos aproximássemos de determinado grupo ou evento social/existencial teríamos que chegar desarmados de um a priori, como a idéia de identidade (cultural, no caso) entificada, e apreendê-los como processo, como dinâmica.

Maffesoli (1996) também é um autor que insiste sobre esse ponto. Para ele o individualismo seria um lugar comum que se tornaria delicado questionar. Entretanto, uma “lógica de identidade”, tão cara principalmente ao pensamento moderno, estaria dando claros sinais de saturação na própria estruturação cotidiana da contemporaneidade. Essa lógica se mostra como “algo inteiramente relativo, que não é, de modo algum, constante nas histórias humanas, e que se pode, portanto, considerar que assuma uma outra forma” (p. 301). O que ele propõe chamar de “lógica de identificação” frisaria seu caráter mais processual e menos pontual. Mas, o que indica essa saturação de uma “identidade estável e garantida por si mesma”, tão presente no pensamento moderno? Seria a predominância do prazer dos sentidos, o reino da aparência, a barroquização do mundo social, a naturalização da cultura, a relevância da imagem. Ele desenvolve por toda a obra os pontos onde tudo isso determina essa deterioração da definição da individualidade como determinante de identidade. Aqui basta destacar o fato de que o próprio funcionamento da sociedade contemporânea não permitiria mais a sustentação da lógica de identidade: a indeterminação sexual, o ecletismo ideológico, a versatilidade política, a mestiçagem dos modos de vida demonstrariam bem essa dissolução, ou melhor, essa flutuação dinâmica.
Uma certa fragilidade do eu, que estaria presente na literatura, por exemplo, agora assumiria contornos mais nítidos nas manifestações cotidianas, como os vários papéis existenciais que um mesmo indivíduo ou grupo poderia exercer, muitas vezes tudo ao mesmo tempo. Isso demonstraria “o caráter movediço da individualidade humana”, sempre frisado na literatura em geral, levando-o a afirmar que “o eu é apenas uma ilusão, ou antes, é uma busca um pouco iniciática, não é nunca um dado, definitivamente, mas conta-se progressivamente, sem que haja, para ser exato, unidade de suas diversas expressões” (p. 303). E completa: o que um poeta formularia desse modo, o homem contemporâneo vive no seu dia a dia. O eu torna-se uma frágil construção, circula entre vários modos de existir, ele não tem substância própria, mas constitui-se de uma propriedade humana de funcionar com centros de ação que se formam e se regulam pelas interferências do mundo circundante. Então, “(…) o que merece ser notado é que o sujeito é um ‘efeito de composição’, daí seu aspecto compósito e complexo” (p. 305).
Isso também não teria nada completamente novo. O próprio autor cita o exemplo de Heráclito, que promove uma abordagem segundo a qual o sujeito pode ser pensado a partir do outro, de uma alteridade. Em algumas épocas e ocasiões isso se tornaria mais evidente. É o que estaria acontecendo agora. Essa lógica podendo designar não só os outros em torno de mim, mas os outros em mim - mesmo. Cita então F. Jacques, “a existência do eu está, então, sem conceito”, para apontar que ela se constrói na relação, na lógica comunicacional (p. 305) e não num ponto pré-estabelecido chamado conceito. É por isso que Maffesoli reafirma um processo ou lógica da identificação, antes de se falar em identidade. Na verdade o que ele parece querer denunciar e desmontar é a “visão jurídica e psicológica de um indivíduo senhor de si, associado contratualmente com outros indivíduos para construir a vida social” (p. 306). O afeto, a economia, a religião, enfim, a vida comum, tal como atualmente estão organizados, tratariam de desmistificar essa visão e mostrar uma outra possibilidade de ligação entre as pessoas.
O autor propõe a certa altura que façamos a distinção de indivíduo, que representaria a tendência a estabelecer uma identidade forte e particularizada, e pessoa (persona), que procederia por identificações sucessivas. “Ao indivíduo, oposto à pessoa, corresponderia a identidade, oposta à identificação” (p. 309). Esta é a proposta dele, mas seria interessante notar que em relação à polaridade indivíduo (fechado) e pessoa (aberto) Maffesoli não propõe a forma correta, mas a que predomina de acordo com “l’air du temp”. Na contemporaneidade a pessoa parece se evidenciar e o indivíduo começa a se dissolver em multiplicidades de estilos de vida e jeitos de ser que constituem a maior parte das sociedades atuais.
Enfim, a pessoa pode se manifestar por via de várias máscaras, que poderiam encarnar em um ou mais indivíduos, sem que isso tivesse necessariamente que estabelecer algo como “a identidade do indivíduo”. As pessoas são, além do mais, constituídas por um forte componente hedonista, isto é, “todas as potencialidades humanas: a imaginação, os sentidos, o afeto, e não apenas a razão, participam dessa construção” (p. 310). Voltando a F. Jacques, Maffesoli pesca uma formulação daquele autor para afirmar a lógica dessa construção, uma lógica comunicacional: assim como haveria identificações sucessivas em diferentes momentos da comunicação, haveria também identificações de diversas facetas da própria pessoa. Poderia-se falar de uma relação triádica na comunicação com o si mesmo: “relação mais rica, visto que comporta três pólos em vez de dois: o eu constitui-se como um isso diante do ti interior” (F. Jaques). E Maffesoli discorre durante algumas dezenas de páginas em torno dessa argumentação básica, de forma muito interessante, diga-se. Mas vamos parar por aqui.

Essa exposição poderia continuar indefinidamente. Fora o fato de que teríamos de pôr em jogo os argumento de autores que apontam para os exageros e distorções que esse questionamento pode favorecer. Mas isso fica para um outro momento. Talvez possamos adiantar agora que o que se passa seria análogo à discussão inicial em física: a luz é um fenômeno de partícula ou de onda? As maiores desavenças teóricas e os maiores esforços experimentais foram feitos no sentido de que cada lado “provasse” a sua posição. Até chegarmos a conclusão de que, dependendo do ponto de vista, dos métodos de análise e experimento, de um contexto enfim, o fenômeno da luz poderia ser corretamente interpretado como onda ou partícula. A luz passou a ser considerada então como um fenômeno de onda e partícula ao mesmo tempo.
Nós ainda temos uma dificuldade quase que estrutural de operarmos com fenômenos que apresentem características mutuamente excludentes no plano racional. De qualquer forma, isso parece demonstrar a onipotência que a nossa organização racional expressa ao negar qualquer possibilidade que, em princípio, não siga parâmetros preestabelecidos ou que contradigam uma lógica binária exclusivista. Talvez seja uma questão de evolução do pensamento; não em seus conteúdos, pois os sistemas e teorias que temos atualmente são bastante complexos em termos de conteúdos. Mas, talvez o funcionamento operacional apresente ainda uma série de limitações que não permitem um avanço na apreensão e na constituição de uma realidade. Os recortes de realidades acabam sendo até bastante coerentes, mas, um tanto “duros”.
É interessante a articulação de nosso objeto a essa idéia de onda/partícula porque, se repararmos bem, trata-se da mesma problemática epistemológica em outro plano. Não é uma “mera” analogia. Poderíamos considerar que as modulações subjetivas mais especificamente identitárias, que não se atualizam diretamente em um corpo individual ou em comportamentos definidos, seriam consideradas onda (no sentido da física/matemática em que onda é antes uma equação de forças em jogo). Caso desejemos considerar um fenômeno subjetivo em sua especificidade fenomenológica, em sua singularidade fenomenológica, enfim, em sua forma particular, teríamos então que interpretar aquele fenômeno, dentro de um contexto, como partícula, como particularidade, isto é, como personalidade.

Para concluir, darei um exemplo banal, que não se acha diretamente dentro da obra dos autores acima, mas que demonstra muito bem do que estamos falando. No período de aquisição da fala, em que a criança já começa a emitir idéias rústicas e formular de forma primária os desejos, é curioso o fato de não se referirem a si na primeira pessoa do singular. O que esse fato aparentemente banal quer dizer? Que elas não têm ainda um processamento e um registro de que função elas ocupam na língua. Elas não podem emitir “eu” simplesmente porque este não está ainda constituído. A função subjetiva “eu” ainda não foi elaborada, programada, situada. O “personagem” ainda não está construído, portanto, a personalidade ainda é rudimentar, precária. A criança se trata, se vocês prestarem atenção, sempre na terceira pessoa: “fulaninho quer beber água, fulaninho está com raiva, fulaninho quer brincar...”, referindo-se a si mesma. Ela é o outro. O que parece banal, o que ninguém presta atenção, o que não consta nem na obra de autores importantes como os que acabamos de acompanhar, é, parece, o fato mais fundamental na argumentação de todos que afirmam o eu como construído e não dado desde sempre. É complicado pensar isso. É ininteligível para a maior parte das pessoas. Mas, os fatos falam por si. Em algum momento eles farão as mentes darem “up grade” no processamento das informações do mundo e de si próprios. Verão, talvez, que elas e este mundo são a mesma coisa.






BIBLIOGRAFIA.

1. BOUGNOUX, Daniel. Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis, 1994. Ed. Vozes.
2. GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografais do Desejo. Petrópolis, 1986. Ed. Vozes.
3. LACAN, Jacques. O Seminário - O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro, 1985. Jorge Zahar Editor.
4. MAFFESOLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis, 1996. Ed. Vozes.

domingo, 19 de agosto de 2007

Primeiro Dia

Não vou escrever nada, é noite, estou com sono. Amanhã eu penso.